Aparecida Ramos - Prosa e Verso
Palavras que a alma e o coração não calam.
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Até onde importam as aparências
 
Hildebrando, depois que nos casamos, passou a me ver com olhos de reprovação. Para ele tudo que faço está errado. Possui a triste mania de admirar as mulheres alheias. Outro dia me falou que pára na rua e fica admirando a senhora Catarina, quando a mesma está nas alturas de uma escada pintando o teto da própria residência, enquanto o marido trabalha como gerente de uma loja de eletrodomésticos. Sem nenhuma ponderação chega e me diz que mulher “boa” é aquela que ajuda o marido nesses serviços de pintura, conserto de telhado, etc. Para essa criatura, meus pecados são maiores do que das demais pessoas. Argumentei tentando fazê-lo entender que “pecado” é não ser verdadeiro, autêntico. Pecado é usar uma máscara diante das visitas e dos amigos (como ele faz), para tentar passar uma imagem que não tem.  Costuma dizer que não sei me comportar, que não tenho boas maneiras. Sempre abominou o uso de calças compridas apertadas. Diz que gosto de aparecer, quero ser a melhor, que me meto em tudo. Blusas sem mangas, roupas transparentes, ainda usando forro, não é roupa para uma senhora comprometida. Vive tentando incutir em minha mente, que eu preciso aprender a me vestir de acordo com minha idade. Ontem foi o dia de seu aniversário, decidi presentear-lhe me vestindo para sair com o mesmo,  de acordo com suas sugestões. Calça comprida e blusa de mangas longas. Ele me olha e arrisca um elogio seguido de mais uma de suas observações repetitivas: muito bem, é assim que você deveria se vestir sempre. Entro no carro me sentindo prisioneira, sufocada, empacotada dentro daquela roupa em uma noite de calor insuportável. Ele não disfarça a cara de preocupação diante dos amigos, que sempre me viram como a mulher que o marido sente vontade de manter escondida, prisioneira, afastada de tudo e de todos. Há mais de dois anos não saíamos juntos, exceto para levar e buscar nossa filha caçula na universidade. Não sei o que passou por sua cabeça, que decidiu sair , dessa vez comigo, para encontrar os amigos em função de seu natalício. Durante esses 28 anos de convivência, aprendi a observá-lo muito mais do ele possa imaginar. Vejo como finge ser um marido preocupado com a esposa, vive inssitindo comigo para que eu cuide melhor de minha saúde. Diz que mulher quando vai 'caindo na idade" costuma apresentar sérios problemas de saúde, como osteoporose, por exemplo. Decidiu marcar uma consulta na clínica onde temos convênio. Moramos a dois quarteirões, por isso não precisamos ir de carro. Me visto com um vestido de cetim de seda, justo, decotado e sem mangas. Após o café da manhã, ele decidiu me acompanhar até à clínica. Percorremos todo percurso em silêncio absoluto. Hildebrando fingiu não perceber meu traje ("impróprio" para aquela e todas as ocasiões). Continuei caminhando mantendo a mesma distância ao sairmos de casa. Meu marido tem o hábito de pensar alto, conversar sozinho.  Eu finjo não ouvi-lo e disfarço meu sorriso. Faço isso propositadamente. Às vezes esqueço minha maturidade e ajo como menina, é isso, a vida inteira fui e ainda sou assim. Cometo alguns deslizes que só quando era menina cometia. O fato é que me tornei mulher sem deixar de ser menina. Certa vez, em pleno feriado da cidade, após o almoço, Hildebrando dormia. Saí devagarinho da sala onde (sozinha) assistia um filme. Antes tive o cuidado de reduzir bastante o volume da televisão, como habitualmente costumo fazer quando o mesmo está dormindo. Eu tinha um compromisso justamente naquela hora, com alguém que jamais irei revelar. Aproveitei o momento do sono profundo. Com os joelhos arranhados, ele me interroga no dia seguinte, quando me viu de saia curta. Sem olhar em seus olhos, falei que havia caído no terraço de trás da nossa casa. Aos gritos repetiu que não passo de uma "desastrada", que não mereço ser ajudada. Eu ri mais uma vez, um desses meus risinhos deboxados. Aborrecido, Hildebrando não se preocupou em me ajudar a cuidar dos pequenos ferimentos. Fui sozinha no PS, e de lá aproveitei para ir até à clínica, era o retorno de minha consulta. O médico atrasou. Precisei ir ao banheiro. Antes, ao lado no banheiro masculino, vejo pessoalmente "a razão" dos meus joelhos arranhados. Falei que não havia mais tempo, qualquer momento meu nome ia ser chamado pela recepcionista. Ele me diz que estava morrendo de saudades.  Envolvida em seus braços, disse-lhe que tudo precisava ser muito rápido, que me interessava apenas saciar o desejo. Entre abraços, amassos, beijos na boca, línguas entrelaçadas, nos entregamos despudoradamente. Tudo no mais absoluto silêncio. Àquela hora da tarde não havia quase ningém na clínica. Com o atraso do médico, a maioria das mulheres desistiu da consulta. Em êstase nossos corpos mal podiam se mexer. Eu te amo tanto, disse ele. Infelizmente não devo corresponder, não seria lícito nem benigno. Sinto vontade de gritar, me agredir com palavras. Sinto sua mão tapando minha boca. Meu grito não sai. O homem a quem jamais darei um nome me ajuda a me recompor, segura meu braço, me ampara, me beija com a intensidade da primeira paixão. Abotoa o zíper atrás de meu vestido longo. O toque de suas mãos me fazem arrepiar. Estaria pronta para começar tudo de novo, se houvesse tempo. Falei que precisava me retirar às pressas. Ele insiste que confirme outro encontro. Digo-lhe que faria contato no final da semana, quando Hildebrando viajasse para visitar os pais em outra cidade. Ele ajuda a arrumar meus cabelos. Me beija mais uma vez e lembra que irá aguardar com ansiedade o contato. Nem entrei mais na clínica. Saí quase voando, atravesso a rua principal, disfarçando minha preocupação diante das pessoas que encontrava. O coração pulsando mais que o normal, as pernas trôpegas. Deixei para trás o que tive e espero ter, mesmo sem saber até quando a vida irá me permitir jogar esse jogo perigoso. Momentos de prazer que superam (quase) uma vida inteira. Hildebrando me aguarda no portão de entrada. Sua fisionomia séria me passa a preocupação com meu atraso. Mesmo assim não economizou em elogios: isso, sim, é que roupa decente para uma senhora casada. Ensaiei um risinho torto, fingi que concordei. Me sentindo mais mulher do que nunca, preferi me recolhermais cedo que o habitual. "Desavisado" Hildebrando não sabe ou esqueceu que mais importante que a aparência é o que reside no interior de cada pessoa.
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"Não basta apenas ser, é preciso parecer".
Eu digo: Não basta apenas parecer, é preciso principalmente ser! As duas podem significar a mesma coisa ou/e vice versa. Certamente você conhece.
A frase (entre aspas) aprendi da minha avó materna.
Ísis Dumont
 
Aparecida Ramos
Enviado por Aparecida Ramos em 23/04/2014
Alterado em 25/04/2014
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