Aparecida Ramos -  Prosa e Verso

Palavras que a alma e o coração não calam.

Textos

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O INFERNO VISTO A PARTIR DELE MESMO


Era quase meia noite naquele dia 02 de novembro de 2006. A guarda municipal e diversos policiais do 7º BPM tiveram muito trabalho para organizar a multidão que se aglomerava nas imediações dos dois portões do "Cemitério São Judas Tadeu" na capital do Estado. À 00:15h, após várias confusões, o local, enfim pode ser esvaziado. Somente a partir desse horário os vizinhos moradores da favela próxima ao "campo santo" puderam se recolher. "Chico Arruaceiro" como era conhecido no bairro e nas redondezas, nunca dormia normalmente como as demais pessoas. Retirar-se das ruas às 04:00 da manhã tornou-se habitual para o mesmo. Dizia que não tinha sono, que escutava vozes, via vultos rodopiando em sua volta dentro do casebre onde morava sozinho. Por companhia tinha apenas um cachorro vira-lata (pulguento) e um jumento que amarrava diariamente em um terreno baldio ao lado da comunidade. Chico Arruaceiro, 29 anos, solteiro, desempregado, ex morador de rua, alcoólatra desde os 15 anos. Época em que perdera sua mãe, vítima de bala perdida durante tiroteio entre policiais e bandidos da gangue "cospe fogo". O menino cresceu sem conhecer o pai. A mãe nunca lhe falou sobre isso. Mas uma vizinha, certa vez, escondido da mãe de Chico, contara-lhe que ela havia engravidado de um tio (da mesma), que a seduzira quando tinha apenas 12 anos. Vítima de abusos sexuais durante 7 anos, que só cessaram quando a mesma desconfiou que estava grávida. E esse "tio", ao saber da confirmação da suposta gravidez, desapareceu no mundo. 
Naquela noite de finados, Chico havia ingerido bebida alcoólica mais que o natural. Fora visto por muitos amigos e vizinhos, caído chorando sobre o túmulo da mãe. Túmulo que só existia porque o avô, que morava em outro Estado, mandou construir. Os portões foram fechados, exatamente à meia noite. Ventava muito e as velas não resistiram à combustão até o fim. O local escureceu, os pósters que iluminavam as "alamedas" dos mortos, estavam com as lâmpadas apagadas, devido a um curto circuito, dado o aquecimento dos fios (pelas velas) durante o dia inteiro. Silêncio total, as almas puderam continuar dormindo em paz o sono eterno. Chico, de tão bêbado, não percebeu quando a guarda fechou o último portão. "Desmaiado" dormia profundamente... Lá pelas tantas, levantou-se, pensou que estava em casa e saiu procurando água para beber, foi aí que "deu de cara" com a parede ao lado da sepultura que lhe servia de cama. O impacto foi tão grande que quase o fez perder os sentidos. Caído no chão e sem poder falar, sem ninguém a quem pudesse pedir socorro, Chico "pega" no sono outra vez. Dessa vez o sono transformou-se em uma grande aventura, como Chico sempre sonhara. Ele alimentava desde menino, um desejo enorme de fazer uma grande viagem para conhecer lugares bem distantes. Mas sempre dizia que não gostaria de ir sozinho, embora, não se importava com o tipo de companhia que pudesse lhe acompanhar. Certa vez, chegou a admitir que até o "encardido" serviria para ser seu acompanhante. Demorou para adormecer novamente. Além da sede, garganta ressequida, seu estômago estava vazio. Lembrou que só comera na manhã daquele dia, um pãozinho com uma xícara de café, que "João" da lanchonete havia lhe dado., Chico percebeu que o vento estava bravo, uivava feito lobo faminto nas folhagens das grandes amendoeiras. Um vento gelado e um cheiro estranho tomou conta do ambiente. O odor parecia ser de enxofre, mas ao mesmo tempo provocava uma sensação de ardência nas narinas, ouvidos, olhos e garganta. Chico conseguiu com muito esforço fechar os olhos e sonhar ainda acordado o seu sonho de criança: viajar para um lugar além. Foi aí que tudo começou. De repente, sonâmbulo, ele se ver caminhando e percebe que mais adiante vem alguém em sua direção pisando fortemente no chão. Caminha cambaleante, ainda sob o efeito do excesso de bebida, quando esbarra em um ser, um homem, imagina ele. No entanto, tratava-se de uma criatura muito estranha, um tipo que jamais Chico seria capaz de descrever com precisão. O ser possuía uma fisionomia aterrorizante. Calcula-se que tinha no mínimo três metros e meio de altura. Carregava nas costas dentro de um buraco enorme, uma grande mochila de couro de cobra cascavel. Era escuro como a noite naquele lugar onde a única faísca que se podia enxergar era de seus grandes olhos esbugalhados. Tinha nariz acentuadamente torto e um grande espaço entre as cavidades dos seus profundos e assustadores olhos. Os pés imensos eram voltados para trás.Tinha mãos  e dedos enormes, com unhas que mediam em torno de 10 cm. Conduzia em cada mão uma espada suja de sangue, erguida para o alto. Chico Arruaceiro, que tantas arruaças praticou, espalhando durante anos o terror entre a vizinhança, agora tremia, chorava e gritava assustado. Seu grito ninguém ouvia, era apenas um murmúrio abafado pelo pavor daquele horripilante visitante. Chico ainda tentou dar uns dois passos, tentando desvencilhar-se do intruso, mas logo foi arrebatado por várias mãos que mais se assemelham a tentáculos que surgiram de trás do forasteiro. Gritos desesperadores são ouvidos, inclusive por moradores vizinhos. No terreno ao fundo do cemitério, um buraco gigantesco se abriu. Labaredas subiam até a altura dos pósters. Uma legião de demônios armados com garfos enormes começou a subir pelas paredes daquele buraco que era mais assustador que o Vesúvio em erupção. Quando pisaram no solo do cemitério, uma grande explosão se ouviu em toda redondeza. O dia já vinha raiando. Uma nuvem negra de fumaça cobriu a região. Os sobreviventes cadavéricos ainda perambulam pela cidade em dias de finados. Nunca mais se ouviu falar das arruaças de Chico Arruaceiro. O além continua a esperá-lo para realizar seu sonho infantil. Chico não fala mais com ninguém, adquiriu uma fisionomia de monstro. Hoje quase se assemelha ao ser que lhe assombrou no cemitério, apesar de não conduzir as espadas. As pessoas desconhecem a forma como o mesmo sobrevive. Toda noite de lua cheia atravessa o portão de entrada sem abri-lo e vai participar de um ritual macabro junto com aqueles demônios que viraram seus amigos, depois que ele foi transformado. Nessas noites ninguém consegue dormir na vizinhança. Os gritos agudos de seres satânicos desesperados ecoam pelo infinito, gerando à população um pavor generalizado. 
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Ísis Dumont

 
Aparecida Ramos
Enviado por Aparecida Ramos em 09/07/2014
Alterado em 09/07/2014
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