Só eu chorei Não foi necessário muita observação para ver que naquele semblante havia algo secreto, retalhos de uma história guardada durante anos, que não se deve contar para qualquer pessoa. Seu olhar terno não conseguia esconder uma nuvem de tristeza, a qual demonstrava haver um sofrimento vivenciado lá atrás, talvez no início de sua vida. Um tipo alto, franzino, sorridente, se destacava entre os demais alunos da turma. Eu estava no portão logo no primeiro dia de sua chegada. Estávamos no início das aulas/ano letivo 2006. Não foi muito fácil seu entrosamento entre os colegas de classe. Tímido, arredio, parecia sentir medo das pessoas como se cada uma fosse lhe causar algum "mal". Algumas semanas se passaram,... Eu sempre lhe dei atenção, o cumprimentava, tentava conquistar sua confiança. Afinal, estava "curiosa" para conhecer um pouco sua história de vida. O que havia de tão "grave" por trás daqueles olhos doces e tristes ao mesmo tempo? Essa era minha maior inquietação. Certo dia, após o término das aulas ele quis ficar mais um pouco comigo na secretaria. Eu estava arrumando uns livros que haviam chegado para a biblioteca, e ele se ofereceu para me auxiliar, visto que eu estava sozinha naquela tarde. A secretária havia faltado. Aproveitei o momento e pedi-lhe que me falasse um pouco sobre sua família, já que por ser novato e estarmos no início do ano, eu ainda não conhecia seus pais ou responsáveis. Na primeira reunião de pais nem todos compareceram, como de costume. Meu aluno, com um sorriso (marca de sua personalidade) no rosto, começou a me falar que não conhecera a mãe bioólogica e que fora criado pela "avó". Perguntei sobre seu pai, e logo me respondeu que se tratava de um homem solteiro, que morava com a mãe (a que seria avó), mas na verdade ela é "sua" mãe do coração. Contou-me que seu pai (adotivo), certa vez ao meio dia avistou uma mulher tentando afogar uma criança, com apenas um ano de idade, em um açude no sítio onde morava. Foi ele quem o salvou das águas, o resgatou das mãos daquela senhora, suposta mãe biológica. Falou-me também que, além de ser alcóolatra ela era também portadora de problemas psiquiátrico. Disse que no momento da tentativa de afogamento, a mesma estava embriagada. Nossa conversa continuou no dia seguinte. Lembro-me que ele falou sobre o sofrimento durante a infância. Que fora tratado de forma desigual, o que podemos chamar hoje de "exclusão" dentro da própria família que o adotou. Além disso, apanhou (do pai) durante toda infância. Fiquei muito triste pensando naquele tipo franzino, que sendo criança deve ter sido "desnutrido, frágil, apanhando de um adulto grosso, ignorante e até certo ponto "burro"! Percebi no rosto daquele menino (que até hoje é meu amigo) que o mesmo parece ter superado os traumas de sua triste história de vida ou... talvez não tenha e não terá maturidade suficiente para perceber a gravidade desses fatos que fazem parte de um passado que nunca será apagado. Quem sabe, sendo assim ele seja mais feliz. Os detalhes sobre sua infância mais a história do "afogamento" me comoveram demais... Entretanto, ele permaneceu o tempo quase todo com o mesmo sorriso no rosto. Apenas em um momento vi que se emocionou um pouco quando expressou isso em seu rosto vermelho. No final dessa conversa, com minha sensibilidade aflorada e meu coração partido... "Só eu chorei". Ele hoje é casado, pai de duas meninas, trabalha muito, e ainda estuda à noite, faz um curso de enfermagem. Somos amigos e nos visitamos de vez em quando. Tenho pelo mesmo um carinho todo especial, é como se fosse para mim um filho ou sobrinho muito querido. Isis Dumont Aparecida Ramos
Enviado por Aparecida Ramos em 20/11/2013
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